quinta-feira, 5 de março de 2020

Embaixo & Encima

Os carros tão rápidos lá embaixo
Nós tão devagar aqui em cima

Sinal vermelho lá embaixo
Sinal verde aqui em cima
Os carros tão devagar lá embaixo
Nós tão rápidos aqui em cima

Sinal verde lá embaixo
Sinal vermelho aqui em cima
Os carros tão barulhentos lá embaixo
Nós tão silenciosos aqui em cima

Sinal amarelo lá embaixo
Sinal verde aqui em cima
Os carros tão silenciosos lá embaixo
Nós tão barulhentos aqui em cima

Engarrafamento lá embaixo
Passagem livre aqui em cima
Pé no freio lá embaixo
Pé no acelerador aqui em cima
Ponto morto lá embaixo
Quinta marcha aqui em cima

Fim da linha.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Namore alguém que esteja na militância junto de você,

que fortaleça o seu engajamento, que apoie os seus corres, que ande de mãos dadas com você nas manifestações, que esteja na luta, que assuma o compromisso contra o fascismo, que potencialize a sua revolta, não aceite menos do que isso...

Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

"Há uma velha ilusão chamada bem e mal. A roda dessa ilusão girou, até agora, em torno de videntes e astrólogos.

Outrora, se acreditava em adivinhos e astrólogos: por isso acreditava-se: 'Tudo é destino: tu deves, pois tem de!'.

Então se desconfiava de todos os adivinhos e astrólogos: por isso acreditava-se: 'Tudo é liberdade: tu podes, pois queres!'.

Ó meus irmãos, sobre as estrelas e o futuro  houve apenas ilusão e não conhecimento até agora: por isso, sobre bem e mal houve apenas ilusão e não conhecimento até agora!"

(Nietzsche, Assim Falou Zaratustra - um livro pra todos e pra ninguém, "Das velhas e novas tábuas",  1885, tradução de Paulo César de Souza).

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Por um Camus menor,

é preciso criar uma língua dentro da linguagem camusiana, potencializando devires minoritários quase imperceptíveis, produzindo assim uma torção, criando dobras na sua escritura para dizer com ele o que ele não disse, desterritorializando seus devires de escritor e romancista e contista e dramaturgo e ensaísta e jornalista etc. em uma perspectiva molecular, fazendo vazar no seu pensamento novas potências diferentes ainda pouco experimentadas na atualidade, como diriam Deleuze e Guattari em "Kafka: por uma literatura menor" (1975).


sábado, 11 de janeiro de 2020

A guerra começou, onde está a guerra?

"A guerra começou. Onde está a guerra? Fora das notícias em que se deve acreditar e dos anúncios que se deve ler, onde encontrar os sinais do absurdo evento? Ela não está nesse céu azul sobre o mar azul, nesses cantos estridentes de cigarras, nos ciprestes das colinas. Não é esse recente aumento de luz nas ruas de Argel.

Queremos acreditar nela. Procuramos seu rosto e ela nos recusa. Somente o mundo é rei de seus rostos magníficos. 

Ter vivido no ódio dessa besta, tê-la diante de si e não saber reconhecê-la. Tão poucas coisas mudaram. Mais tarde, sem dúvida, surgirão a lama, o sangue, a imensa repugnância. Mas por hoje provamos que o início das guerras é parecido com os princípios da paz: o mundo e o coração os ignoram".

(Albert Camus, Cadernos, 1939-42, "A guerra começou, onde está a guerra?", tradução de Raphael Araújo e Samara Geske).


sábado, 28 de dezembro de 2019

Em 1949 Camus visitou o Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, que era coordenado por Nise da Silveira. Deixou registrado em seu diário no dia 24 de Agosto o seguinte: "Levanto-me um pouco melhor ainda. Agora a partida foi marcada para sábado. Visitas pela manhã, e volta ao cansaço. A tal ponto que resolvo não almoçar. Às 13:30, Pedrosa e sua mulher vêm buscar-me para ir ver as pinturas dos loucos, no subúrbio, num hospital de linhas modernas e com uma sujeira antiga. O coração se confrange vendo os rostos por trás das grades das janelas. Dois pintores interessantes. Os outros, sem dúvida, têm material para fazer extasiarem-se nossos espíritos avançados em Paris. Mas, na realidade, é tudo feio. Mais impressionante ainda na escultura, feia e vulgar. Fico apavorado ao reconhecer, num jovem médico-psiquiatra do estabelecimento, o rapaz que no início me formulou a pergunta mais tola que já me fizeram em toda a América do Sul. É ele quem decide o destino desses infelizes. Aliás, ele mesmo muito atacado. Porém, fico ainda mais aterrorizado quando ele anuncia que fará a viagem a Paris comigo, no sábado; 36 horas trancado com ele numa cabine metálica, é a última provação.
À noite, jantar em casa dos Pedrosa, com gente inteligente. Chuva forte na volta."


sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

"Se amar bastasse, as coisas seriam simples.

Quanto mais se ama, mais se consolida o absurdo. Don Juan não vai de mulher em mulher por falta de amor. É ridículo representá-lo como um iluminado em busca do amor total. Mas é justamente porque as ama com idêntico arroubo, e sempre com todo o seu ser, que precisa repetir essa doação e esse aprofundamento. Por isso, cada uma delas espera lhe oferecer o que ninguém nunca lhe deu. Em todas as vezes elas se enganam profundamente e só conseguem fazê-lo sentir necessidade dessa repetição. 'Por fim', exclama uma delas, 'te dei o amor'. Não surpreende que Don Juan ria dela. 'Por fim? Não' - diz ele - 'outra vez.' Por que seria preciso amar raramente para amar muito?" (Albert Camus, O Mito de Sísifo - ensaio sobre o absurdo, "O Donjuanismo", p. 83, tradução de Ari Roitman e Paulina Watch).