pois o ciúme se aproxima da inveja, já que o ciúme é "um sentimento simultâneo de amor e de ódio, acompanhado da ideia de outro de quem se tem inveja" (Ética, III, Escólio da Proposição 35). E para ele a inveja é "uma tristeza diante da felicidade de alguém" (Ética, III, 23). O ciúme resulta da "imaginação de que a coisa amada se une a outro, de modo a impedir de fruí-la sozinho" (Ética, III, Proposição 35). O ciúme resultado da imaginação diminui a potência do agir, então o combate ao ciúme é uma afirmação das paixões alegres, que aumentam a nossa potência de existir. Não há nada de positivo no ciúme: é uma tristeza que se transforma em ódio quando o amor parece estar ameaçado, transfigurando-se no oposto do amor.
domingo, 31 de julho de 2016
sexta-feira, 29 de julho de 2016
Quem não ama a solidão, não ama a liberdade.
Nenhum caminho é mais errado para a felicidade do que a vida no grande mundo, às fartas e em festanças (high life), pois, quando tentamos transformar a nossa miserável existência numa sucessão de alegrias, gozos e prazeres, não conseguimos evitar a desilusão; muito menos o seu acompanhamento obrigatório, que são as mentiras recíprocas.
Assim como o nosso corpo está envolto em vestes, o nosso espírito está revestido de mentiras. Os nossos dizeres, as nossas ações, todo o nosso ser é mentiroso, e só por meio desse invólucro pode-se, por vezes, adivinhar a nossa verdadeira mentalidade, assim como pelas vestes se adivinha a figura do corpo.
Antes de mais nada, toda a sociedade exige necessariamente uma acomodação mútua e uma temperatura; por conseguinte, quanto mais numerosa, tanto mais enfadonha será. Cada um só pode ser ele mesmo, inteiramente, apenas pelo tempo em que estiver sozinho. Quem, portanto, não ama a solidão, também não ama a liberdade: apenas quando se está só é que se está livre.
A coerção é a companheira inseparável de toda a sociedade, que ainda exige sacrifícios tão mais difíceis quanto mais significativa for a própria individualidade. Dessa forma, cada um fugirá, suportará ou amará a solidão na proporção exata do valor da sua personalidade. Pois, na solidão, o indivíduo mesquinho sente toda a sua mesquinhez, o grande espírito, toda a sua grandeza; numa palavra: cada um sente o que é.
Ademais, quanto mais elevada for a posição de uma pessoa na escala hierárquica da natureza, tanto mais solitária será, essencial e inevitavelmente. Assim, é um benefício para ela se à solidão física corresponder a intelectual. Caso contrário, a vizinhança frequente de seres heterogêneos causa um efeito incomodo e até mesmo adverso sobre ela, ao roubar-lhe seu «eu» sem nada lhe oferecer em troca. Além disso, enquanto a natureza estabeleceu entre os homens a mais ampla diversidade nos domínios moral e intelectual, a sociedade, não tomando conhecimento disso, iguala todos os seres ou, antes, coloca no lugar da diversidade as diferenças e degraus artificiais de classe e posição, com frequência diametralmente opostos à escala hierárquica da natureza.
Nesse arranjo, aqueles que a natureza situou em baixo encontram-se em ótima situação; os poucos, entretanto, que ela colocou em cima, saem em desvantagem. Como consequência, estes costumam esquivar-se da sociedade, na qual, ao tornar-se numerosa, a vulgaridade domina.
Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'
quinta-feira, 28 de julho de 2016
Boceta
da entrada à entranha
dessa eterna
morada
da morte diária
molhada
de mim
desde dentro
o tempo
acaba
entre lábio e lábio
de mucosa rósea
que abro
e me abra
ça a cabe
ça o tronco
o membro
acaba o tempo
[Arnaldo Antunes]
http://cseabra.utopia.com.br/poesia/poesias/0183.html
dessa eterna
morada
da morte diária
molhada
de mim
desde dentro
o tempo
acaba
entre lábio e lábio
de mucosa rósea
que abro
e me abra
ça a cabe
ça o tronco
o membro
acaba o tempo
[Arnaldo Antunes]
http://cseabra.utopia.com.br/poesia/poesias/0183.html
quarta-feira, 27 de julho de 2016
Sobre amizade, engajamento e responsabilidade.
Uma vez me contaram que durante um desfile do dia da Independência um soldado do Exército estava marchando em ritmo diferente dos outros - enquanto todos faziam "1, 2", ele marchava ao contrário, fazendo "2, 1". Um amigo dele assistindo da platéia disse: - vejam só, todos estão marchando errado e só o meu amigo está correto!
Às vezes as amizades são assim, para demonstrar que somos grandes amigos, dizemos até coisas que não são verdadeiras e acabamos até mesmo sendo injustos com outras pessoas por conta disso. Para defender um amigo, tudo é permitido?
E quando um grupo de amigos se engaja para defender causas justas não seria incoerente defender uma mentira mesmo para ajudar um amigo? E quando uma mentira defendida para proteger um amigo prejudica a coletividade?
No engajamento você sai do seu egoísmo do mundo pessoal e assume responsabilidades para com a coletividade e assim, independentemente das amizades, o que está em jogo nas ações são atitudes e palavras que levem em consideração a responsabilidade coletiva.
Somos livres para não nos engajar em nada, mas quando assumimos um compromisso com o coletivo, temos muitas vezes inclusive que fazer coisas que não podemos e que ainda assim damos um jeito para que aconteça de forma justa, sem prejudicar o coletivo.
Neste horizonte, do ponto de vista ético, diante de uma situação de injustiça, é preferível ser justo com o coletivo e não defender um amigo, para ser coerente, sobretudo, com o engajamento que busca justiça para coletividades.
Em outras palavras, muitas vezes é preciso separar o engajamento da amizade para sermos éticos.
terça-feira, 26 de julho de 2016
A língua lambe.
A língua lambe as pétalas vermelhas
da rosa pluriaberta; a língua lavra
certo oculto botão, e vai tecendo
lépidas variações de leves ritmos.
E lambe, lambilonga, lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais ativa,
atinge o céu do céu, entre gemidos,
entre gritos, balidos e rugidos
de leões na floresta, enfurecidos.
- Carlos Drummond de Andrade, em "O amor natural". Rio de Janeiro: Record, 1992.
da rosa pluriaberta; a língua lavra
certo oculto botão, e vai tecendo
lépidas variações de leves ritmos.
E lambe, lambilonga, lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais ativa,
atinge o céu do céu, entre gemidos,
entre gritos, balidos e rugidos
de leões na floresta, enfurecidos.
- Carlos Drummond de Andrade, em "O amor natural". Rio de Janeiro: Record, 1992.
segunda-feira, 25 de julho de 2016
A carne é triste depois da felação.
A carne é triste depois da felação
Depois do sessenta-e-nove a carne é triste.
É areia, o prazer? Não há mais nada
Após esse tremor? Só esperar
Outra convulsão, outro prazer
tão fundo na aparência mas tão raso
na eletricidade do minuto?
Já dilui o orgasmo na lembrança
E gosma
escorre lentamente de tua vida
- Carlos Drummond de Andrade, em "O amor natural". Rio de Janeiro: Record, 1992.
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