sábado, 31 de agosto de 2013

O sino no pescoço da Globo.

Para ler ao som do soteropolitano Raul Seixas.

Meu amor à música popular proporcionou-me inúmeras oportunidades de servi-la, sempre na condição de coadjuvante, de um modo que me orgulho e envaideço ao recordar.

Fui jurado de quase todos os festivais de música popular brasileira, desde o primeiro, na Televisão Excelsior, aos da Televisão Record e alguns da Rede Globo. Quase sempre quem me indicava era o seu produtor, Solano Ribeiro. Em outras ocasiões, pelo que me dizia Solano, meu nome era lembrado pelos próprios concorrentes.

Assim, tive a alegria de ter ajudado a nascer, como um obstetra, claro, os mais importantes compositores brasileiros: Edu Lobo, Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, entre muitos outros. A maior alegria em ter participado desses eventos decorre do fato de ter ajudado a impedir que fossem cometidas injustiças contra os artistas que acabei de citar. 

Nunca trabalhei em qualquer outro tipo de júri, então não posso generalizar. Porém, a responsabilidade estética do jurado em concursos de música popular brasileira tem de ser acompanhada de outra, tão ou mais importante que aquela: a política. Política do tipo brasileiro mesmo: briga de foice no escuro. Briga entre as tendências estéticas e políticas dos jurados, briga entre os jurados por causa de sua amizade e admiração pelos compositores em concurso, briga dos jurados com os organizadores dos festivais, briga dos jurados com a direção da televisão, briga dos jurados com os patrocinadores dos festivais. Resumindo, se o jurado não topar a briga de foice no escuro, não se fará a devida justiça, acabando por não saírem vitoriosos os mais competentes e talentosos. 

Essas brigas ocorrem na forma de bate-bocas que podem terminar em ameaças ou, o que de fato muitas vezes aconteceu, em porradas mesmo. Lembro-me de que, no primeiro festival, um jurado (músico famoso) acusou Edu Lobo de ter plagiado VillaLobos em Arrastão. Dei-lhe 24 horas para que provasse isso, trazendo-nos a prova em número de compassos idênticos, nas duas músicas, para que se configurasse o plágio. Caso contrário eu quebraria a sua cara, por estar ofendendo a honra do meu amigo Edu. Não trouxe a prova e teve de fugir de mim durante todo o festival. 

Arrastão ganhou o festival merecidamente, mas foi muito ajudado pela interpretação brilhante, emocionante, que levou o público a confirmar nossa decisão, da genial cantora que surgia também naquele festival, Elis Regina.

Quando a direção da Record desclassificou Sérgio Ricardo por ter jogado o violão sobre a platéia que o vaiava, me insurgi e levantei o júri contra a direção da emissora, obrigando-a a retirar publicamente a decisão. Para, em seguida, votar contra a música Beto bom de bola, de que realmente eu não gostava, do meu querido amigo Sérgio Ricardo. 

Não estou autorizado a dar detalhes e citar nomes das pessoas pertencentes a um grupo de jurados que sempre se aliaram em defesa da Música Popular Brasileira, numa atividade tanto política quanto artística, discutindo e decidindo quais as composições a classificar, criando estratégias e táticas que nunca foram desonestas, porém surpreendiam nossos adversários, derrotando-os, em maneiras espertas e surpreendentes de dar notas na hora da votação.
O que muito nos orgulhava e desfazia qualquer mal-estar por participarmos de tantos jogos e manobras políticas era o enorme talento dos jovens compositores que protegíamos. Além disso, o que é óbvio, eram pessoas que, além de excelentes artistas, possuíam visão de mundo progressista e antiautoritária.

Tínhamos a nosso favor a admiração total e imediata do público a esses artistas que logo se tornaram ídolos populares e, ao mesmo tempo, uma espécie de reserva cultural e política de integridade e resistência à ditadura militar da época.

Porém, de todas essas aventuras, a que mais me alegra lembrar, apesar dos sofrimentos físicos que me foram infligidos na ocasião, foi a ocorrida no FIC, um festival da Rede Globo, onde eu trabalhava na época criando o programa A Grande Família.

Numa foto do jornal O Estado de São Paulo, que foi reproduzida no meu livro Viva Eu, Viva Tu, Viva o Rabo do Tatu! está documentado esse episódio, acontecido no dia 2 de outubro de 1972. No júri dirigido por Nara Leão, estavam, entre outros, além de mim, João Carlos Martins, Décio Pignatari, Rogério Duprat e Sérgio Cabral. Como a direção da Globo suspeitou que tínhamos a intenção de premiar a música originalíssima, porém muito agressiva, Cabeça, de Walter Franco, ela decidiu destituir o júri nacional, substituindo-o pelo júri composto por estrangeiros que trabalhavam na parte internacional do festival.

Lembro-me da reunião realizada no hotel Copacabana Palace, na qual decidimos redigir um manifesto de protesto e de denúncia contra a Globo, pela sua decisão de nos destituir e por submeter a música brasileira a um julgamento de estrangeiros, atestando, assim, nossa incompetência. E ficou decidido também que um de nós invadiria o palco do Maracanãzinho durante a transmissão ao vivo do festival e leria o manifesto ao microfone. Até aí, tudo bem, e até me faz lembrar a velha piada: os ratos, para se prevenir da aproximação do gato, decidem colocar um guizo no seu pescoço; então um rato gaiato pergunta: “Sim, mas quem vai colocar o guizo no pescoço do gato?” Não sei por que, não me lembro dos argumentos utilizados, mas ficou decidido que eu é que ia ler o manifesto.

O espetáculo corria solto. Munido da credencial, entrei nos camarins do Maracanãzinho e consegui o apoio do grupo O Terço (formado por jovens amigos de meus filhos), que se prontificou a me levar escondido entre eles na hora que entrassem no palco. E assim foi. Cheguei ao microfone e, diante do espanto geral, comecei a ler o manifesto. Mas fui logo agarrado por homens da segurança da Globo que me arrastaram para trás das cortinas. Ali, fui jogado nas mãos de uns dez policiais que começavam a me aplicar uma tremenda surra no exato momento em que o fotógrafo do jornal O Estado de São Paulo conseguia fazer a foto a que me referi. Bateram o quanto quiseram, fraturando-me um braço, quatro costelas e fazendo do meu rosto uma couve-flor sangrenta. E me trancaram num camarim, preso. 

Os primeiros a aparecer foram os meus companheiros do júri, preocupados com meu estado físico e indignados com a violência. Contaram que a televisão tinha saído do ar depois da minha intervenção. Alguns membros da diretoria da emissora apareceram também e fizemos ali mesmo uma reunião, na qual chantageei a Globo: ou liam nosso manifesto no ar, durante o festival, ou eu receberia os jornalistas, daria entrevista sobre a surra e lhes entregaria o manifesto. A chantagem foi acrescida da ameaça dos meus companheiros: tentariam invadir o palco eles também, a menos que fossem todos presos.

Com a retirada de algumas frases agressivas demais para a Globo ler no ar contra ela mesma, o manifesto foi lido pelo apresentador do festival. E fui levado para o hospital, me sentindo feliz e um tanto ridículo por bancar o herói e ter acabado como mártir da MPB ao ousar botar o guizo no pescoço da Globo.

Roberto Freire em Ame & Dê Vexame.



O paulista Roberto Freire.

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